Rainhas do terror #1 – Irka Barrios

(Por Ismael Chaves)

Hoje iniciamos uma nova série aqui no blog: Rainhas do terror. Como o próprio título já aponta, a ideia é valorizar e divulgar a bibliografia de grandes escritoras (principalmente brasileiras/latino-americanas) que vem se destacando no cenário de horror nos últimos anos. E convenhamos, não é a toa esse destaque merecido que elas recebem: seus livros são os mais perturbadores.

Eu não poderia iniciar esse quadro com outra pessoa que não fosse justamente aquela que inspirou essa ideia: nossa querida colega e autora premiadíssima Irka Barrios.

Irka Barrios é, na verdade, o pseudônimo de Bibiana Barrios Simionatto. Natural de Tuparendi, a escritora gaúcha é formada na área odontológica, profissão que exerce até hoje. Seu interesse pela literatura começou como leitora da obra de Lygia Fagundes Telles. Em 2015, cursou a Oficina de Criação Literária do professor e escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, onde iniciou sua formação enquanto escritora. A partir da oficina, aprimorou a escrita e desenvolveu sua carreira como contista, tendo publicado diversos contos em coletâneas desde 2015. Dentre as narrativas que produziu no início da carreira, destaca-se o conto Coelho Branco, com o qual ficou em segundo lugar no Prêmio Brasil em Prosa, Amazon/Jornal O Globo (Prêmio Percursor do “Prêmio Kindle”) em 2015.

A ficção de Irka é influenciada pelo gótico, pelo surrealismo e o realismo mágico latino-americano, com temas que tratam da violência sofrida (e praticada) por mulheres e o fanatismo religioso, não furtando-se de utilizar elementos clássicos como fantasmas, vampiros e outras criaturas inomináveis. Mas é o horror que vem de dentro dos seus personagens que, realmente, acerta o leitor em cheio, nos levando a reflexões sobre a hipocrisia e a podridão escondidas dentro da sociedade – e de todo os seres humanos.

Irka já participou de quase 20 coletâneas, sendo também a organizadora de cinco delas. E nem todas essas narrativas habitam o campo do terror. Teve contos traduzidos e publicados na Argentina, ministrou oficinas de escrita criativa na GOG, atua no coletivo Mulherio das Letras, escreve para a revista Ventanas e é a fundadora e mediadora do Clube de Leitura Escuro Medo. Em 2023, foi palestrante convidada na 75ª Frankfurter Buchmesse, a maior feira de livros do mundo, na Alemanha. Além do prêmio Brasil em Prosa, venceu os prêmios Odisseia de Literatura Fantástica (melhor narrativa curta de terror) e AGES (melhor livro de contos e livro do ano), e foi finalista do Prêmio Jabuti com seu romance de estreia Lauren.

Autora de histórias insólitas e assustadoras, Irka viveu um pesadelo, infelizmente, real nas últimas semanas. Assim como milhares de gaúchos, ela perdeu tudo que tinha (sua casa, local de trabalho e o carro) durante as enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul, em maio de 2024, e destruíram 95% das cidades do estado. Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas ficaram desabrigadas, as mortes já passam de 100 e ainda há muitos desaparecidos. Essa publicação também é uma forma de tentar ajudar essa talentosíssima escritora, que tanto já nos presenteou com suas histórias sinistras, porém reflexivas.

Você pode ajudar doando algum valor para o Pix CPF 00835594009, ou adquirindo suas obras através dos links no final dessa matéria.

LAUREN (2019, Caos e Letras)

“Penso que se o Diabo não existe e foi simplesmente criado pelo homem, este o fez à sua imagem e semelhança.” (Dostoiévski)

Nenhuma frase resumiria melhor o âmago deste livro. Aliás, de quase todas as histórias de terror. Mas, em especial, Lauren absorve este pensamento pois, de todos os medos presentes na vida da personagem-título, nenhum se compara ao pior tipo de horror criado pelo ser humano: a religião.

Uma afirmação ousada, confesso. Mas ousado também é o texto da escritora gaúcha Irka Barrios. Com uma narrativa que, aos poucos, vai desnudando os pensamentos de uma adolescente que, entre o autoritarismo religioso imposto em sua casa e a pressão social vivida na escola, se depara com uma ameaça que pode ou não ser sobrenatural.

Tocando em temas que acendem as fogueiras do ódio conservador, como bullying, assédio sexual, pedofilia, feminismo, questão de gênero, fanatismo e hipocrisia cristã, Irka sabe conduzir muito bem o leitor a esse universo turbulento (e, às vezes, onírico) que cerca e adentra a protagonista, ora nos sensibilizando com suas dores, ora nos pegando de surpresa com um soco no estômago com momentos-chaves. Mais do que uma história de horror, Lauren é a realidade de muitas meninas (e meninos também) que, de uma hora para outra, precisam lidar com suas próprias descobertas e encarar os desafios de uma realidade cruel imposta por princípios e regras de uma sociedade que precisa criar seres sobrenaturais para justificar seus monstros interiores.

Um livro muito aguardado por mim, na época do seu lançamento, e que valeu cada página! Dor, empatia, raiva, repulsa, medo. Sim, eu senti cada uma dessas emoções (obrigado, Irka!). Uma leitura necessária, nestes tempos de puritanos e “caça às bruxas”, que o país mergulhou.

Afinal, parafraseando Carl Sagan, “o mundo (nunca foi tão) assombrado por demônios”, mas assim como ele e Dostoiévski, nós sabemos de onde vem estes “demônios”.

Lauren foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria Romance de Entretenimento, em 2020.

JÚPITER MARTE SATURNO (2021, Uboro Lopes)

O segundo livro de Irka Barrios apresenta sua outra faceta igualmente perturbadora: o conto.

A edição da Uboro Lopes reúne 14 narrativas curtas que transitam entre o bizarro, o estranho, o onírico e o surrealismo, como pequenos pesadelos que perseguem o leitor em um labirinto sem fim.

É nítida a evolução de Irka como escritora e ficcionista desde Lauren, que já havia deixado esse que vos escreve com o queixo no asfalto. Há uma tentativa de ultrapassar as barreiras do gênero, onde a autora demonstra todo seu apreço pelo surrealismo e o realismo mágico, muitas vezes desconcertando o leitor através de imagens inquietantes que ficarão na sua cabeça por muito tempo.

Como em “O bicho”, sobre uma mulher que sente uma criatura rastejar dentro dela, ou “Damião sob a pirâmide” em que um menino que perde seu cachorrinho decide dar um enterro digno baseando-se em estranhos símbolos e rituais ensinados por seu avô misterioso. Ou o horror cósmico de “Verão de 85”. Ou “Flores Domesticadas”, que parece ter saído de um pesadelo de David Lynch. E, claro, o perturbador “Comida Conceito Semelhante” que destruirá para sempre o seu sistema digestivo. Sem dúvida, o meu livro favorito da autora até agora.

Em 2023, Júpiter Marte Saturno venceu o Prêmio AGES em duas categorias: Narrativa Curta e Livro do Ano.

VESPEIRO (2023, DarkSide)

Vespeiro é seu terceiro livro, mas o primeiro publicado por uma grande editora. Um passo além em sua carreira, uma conquista merecida, que deve render vôos ainda maiores. Vespeiro também é o livro mais diferente de sua carreira. Sua escrita está ainda mais afiada e madura do que nunca. Sem dúvida, é um livro com a cara de Irka Barrios.

Mas há uma pequena diferença: Vespeiro não é exatamente um livro de terror.

Na verdade, trata-se de uma obra que reúne parte da produção multifacetada de Irka ao longo dos anos, o que inclui alguns contos de horror, mas vai para além de um único gênero, o que mostra sua versatilidade enquanto contadora de histórias. Ainda assim, é um livro de Irka Barrios. E provavelmente seja sua obra mais incômoda, subversiva e perturbadora.

Aqui, a violência contra as mulheres, mas também perpetrada por elas, dá a tônica do livro, mas tudo é construído de uma forma para além dos limites de categorização. Aqui impera o “realismo”, com o sobrenatural se fazendo presente apenas em alguns contos, e ainda assim de forma sutil. Situações cotidianas, por vezes banais, como assistir a um jogo de futebol ou trabalhar no feriado de Ano Novo, se mesclam ao absurdo e o desconforto de violências e atos subversivos que causam incômodo nas entranhas do leitor. São contos que exploram a faceta mais sombria, mas também a mais libertadora, do ser humano, e principalmente das mulheres. Certos contos são como um respiro, enquanto outros são como gritos de agonia vindos de um moedor de carne que não poupa nada nem ninguém.

Em algumas ocasiões, Irka já comentou que se considera muito mais uma autora inspirada pelo absurdo, o surrealismo e as pautas femininas do que uma autora de horror, sendo o insólito apenas uma ferramenta para desencadear ou apimentar certas tragédias que ela narra. Além disso, esse insólito se aproxima muito mais daquele praticado por autores latino-americanos do que o fantástico europeu ou americano. E seu novo livro, sem dúvida, transborda dessa literatura praticada por autoras como Mariana Enriquez, Maria Fernanda Ampuero e Mônica Ojeda. Vespeiro é essencialmente um livro 100% latino-americano.

Dentre os contos selecionados para essa coletânea, destaco a seguir os meus favoritos:

  • “Febre” – Publicado originalmente no livro In Corpa (O Grifo, 2023), esse conto incomoda e gera desconforto a medida que acompanhamos a história de uma professora que vive sozinha e passa a sentir uma forte atração sexual por um aluno menor de idade. Isso mesmo! Irka deixa claro que esse é um livro para causar incômodos e ela não sente a menor necessidade de pisar no freio. Não se trata de apenas chocar o leitor, mas o que Irka faz aqui – e em outros contos – é provocar a reflexão: E se esse conto fosse protagonizado por um homem? Situações como essa, de abuso e violência doméstica, são o cerne do livro e a autora usa justamente dessa temática para subverter a realidade e colocar personagens femininas em situações não apenas de vítimas, mas de causadoras, e é isso que, numa sociedade patriarcal, gera o verdadeiro horror.
  • “A roda da fortuna” – Assim como no conto anterior, Irka inverte os papéis de vítima e abusador, ao nos apresentar uma personagem que atrai homens para, em seguida, assassiná-los. Segundo a autora, esse conto causa tanto mal estar nela que quase pediu para a editora remover do livro. E ela não poupa os detalhes. Afinal, na vida real, os verdadeiros abusadores também não poupam, não é?
  • “Iara ou Ísis, Isamara ou Isadora” – Um dos contos mais perturbadores do livro. Abusivo, controlador, violento. Aqui, Irka devolve o posto de abusador para um homem, que pratica as cenas mais indigestas e agressivas contra a sua companheira. O detalhe é que sua companheira não é exatamente…bem, leiam. Eu confesso que, após terminar o conto, tive que voltar ao início para ter certeza que realmente se tratava do que eu estava pensando. Esse é o nível de desgraçamento mental do conto!
  • “O silêncio das coisas imóveis” – Um grupo de amigas aluga uma casa na praia. Porém, uma delas, que parece não ter muito controle sobre o uso de substâncias química e alcoólicas, passa a ouvir barulhos e enxergar vultos pela casa. Será que o perigo é real, ou é apenas efeito de alucinógenos? Esse é um dos contos do livro que transitam mais nitidamente pelo terror psicológico. O final sem dúvida parece uma cena saída de um filme da A24!
  • “As presenças” – O conto mais assumidamente de terror da coletânea e o meu favorito. Na história, uma mulher se muda para uma casa e, à noite, ouve uivos que parecem vir da casa ao lado. Então, ela conhece uma estranha menininha, que aparentemente só ela vê. Sua namorada relata ter sido seguida à noite por passos que pareciam de algum animal, mas talvez as coisas não sejam exatamente o que parecem. À medida que a tensão e a atmosfera cresce, a protagonista descobrirá a terrível verdade ao ser convidada para a Ceia de Natal na casa vizinha.

Prêmios e reconhecimentos

  • 2023 – Prêmio AGES Livro do Ano, com Júpiter Marte Saturno.
  • 2022 – Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica, na categoria “Narrativa Curta de Horror”, com o conto A parte de dentro.
  • 2020 – Indicação ao Prêmio Jabuti na categoria “Romance de Entretenimento”, com o romance Lauren.
  • 2015 – Prêmio Brasil em Prosa, Amazon/Jornal O Globo (Prêmio Percursor do “Prêmio Kindle”), com o conto Coelho Branco.

Obras

Contos avulsos

  • 2024 — Esquisito Netuno Escamoso (Coleção CarnaMal) – Compre AQUI
  • 2023 — Noite morna em pleno inverno (Coleção Vampiros) – Compre AQUI
  • 2022 — Iara ou Ísis, Isamara ou Isadora (Coleção Amores Macabros) – Compre AQUI
  • 2015 — O coelho brancoCompre AQUI

Organização e Coautoria

Participações em antologias

  • 2023 — Quebra-ventres, Editora Peripécia.
  • 2023 — In Corpa, Editora O Grifo.
  • 2023 — Terrores Latinos, Luva editora.
  • 2021 — O Novo Horror, Editora O Grifo.
  • 2021 — Nada em comum, Editora Class.
  • 2020 — Fake Fiction, Editora Dublinense.
  • 2020 — Subsolo, Editora Zouk.
  • 2020 — Como tudo começou, EdiPUCRS
  • 2019 — Qualquer ontem, Editora Bestiário.
  • 2019 — Conte outra vez: 30 contos inspirados em canções do Raul Seixas, Publicação Independente.
  • 2019 — Tudo soma zero, Editora Bestiário.
  • 2018 — Não culpe o narrador, Editora Bestiário.
  • 2017 — Língua Rara, Ediciones Outsider (Argentina).
  • 2017 — Cem anos de amor, loucura e morte, Editora Moinhos.
  • 2017 — Translações Singulares, Editora Bestiário.
  • 2017 — Escândalos reinventados, Editora Class.
  • 2016 — Onisciente Contemporâneo, Editora Bestiário.
  • 2016 — Contos Para Ler a Três, Editora Bestiário

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